Regimes Diferenciados na Reforma Tributária – Zona Franca, Simples e Setores Específicos
Como funcionam os tratamentos tributários especiais que preservam competitividade e atendem particularidades setoriais
A reforma tributária brasileira, embora construída sobre princípio de simplicidade através de alíquota uniforme sobre consumo, reconhece que realidades econômicas, sociais e geográficas heterogêneas exigem flexibilidade. A Lei Complementar 214/2025 institui dois tipos de tratamentos tributários excepcionais ao regime regular do IBS e CBS: os regimes específicos e os regimes diferenciados. Juntos, esses regimes abrangem dezenas de setores econômicos, milhões de empresas e representam parcela substancial da atividade econômica nacional.
A tensão entre simplicidade e excepcionalidade permeia todo desenho da reforma. Cada tratamento diferenciado concedido a setor ou região específica aumenta complexidade do sistema e eleva alíquota padrão necessária para manter neutralidade arrecadatória. Porém, desconsiderar particularidades setoriais geraria distorções econômicas graves, comprometeria competitividade de regiões estratégicas e agravaria desigualdades regionais já profundas. O resultado é compromisso pragmático entre pureza conceitual do IVA e necessidades políticas e econômicas concretas.
Distinção fundamental entre regimes específicos e diferenciados
A legislação estabelece diferenciação conceitual e operacional entre regimes específicos e regimes diferenciados, embora ambos representem desvios ao regime regular de tributação.
Regimes específicos aplicam-se a certas atividades ou setores empresariais, adaptados às suas particularidades econômicas e operacionais. Têm como objetivo atender realidades e necessidades específicas dos setores contemplados, reconhecendo que características intrínsecas dessas atividades tornam aplicação do regime regular tecnicamente inadequada ou economicamente inviável.
Os regimes específicos podem envolver alterações de alíquotas, modificações nas regras de creditamento, mudanças na base de cálculo ou até situações em que tributo é calculado com base na receita ou faturamento com alíquota uniforme em todo território nacional ao invés de incidir sobre cada operação individualmente.
Combustíveis e lubrificantes, serviços financeiros, planos de assistência à saúde, concursos de prognósticos, operações com bens imóveis, cooperativas, bares e restaurantes, hotelaria e parques de diversão, transporte coletivo de passageiros, agências de viagens e turismo, Sociedades Anônimas do Futebol e operações alcançadas por tratados internacionais contam com regimes específicos.
Regimes diferenciados, por sua vez, consistem em grupo de setores ou bens onde há tratamento tributário com carga reduzida, podendo incluir isenções ou reduções de alíquotas de 30%, 60% ou até 100%. São essencialmente mecanismos de política redistributiva ou de estímulo a setores considerados estratégicos ou essenciais.
A diferença operacional fundamental é que regimes específicos alteram sistemática de apuração e recolhimento do tributo, enquanto regimes diferenciados mantêm sistemática regular mas com alíquotas reduzidas. Essa distinção tem implicações práticas significativas para compliance empresarial e fiscalização.
Zona Franca de Manaus como prioridade estratégica
A Zona Franca de Manaus representa caso especial de regime diferenciado com proteção constitucional explícita. Criada em 1967 como instrumento de desenvolvimento regional da Amazônia, a ZFM oferece regime tributário diferenciado para empresas que se instalam na região, compensando desvantagens logísticas através de incentivos fiscais federais, estaduais e municipais.
A Constituição Federal, em seu artigo 92-A do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias inserido pela Emenda Constitucional 132/2023, estabelece que leis instituidoras do IBS e da CBS estabelecerão mecanismos necessários para manter, em caráter geral, diferencial competitivo assegurado à Zona Franca de Manaus, com validade estendida até 2073.
Esse comando constitucional não é meramente programático. Exige que reforma tributária preserve efetivamente vantagem competitiva da ZFM, não apenas formalmente mas substantivamente. Se novos tributos eliminarem na prática os benefícios que estruturam modelo econômico manauara, haverá inconstitucionalidade por violação de garantia constitucional expressa.
O principal incentivo histórico da ZFM é crédito presumido de IPI. Indústrias localizadas fora da ZFM que adquirem insumos, matérias-primas e embalagens de empresas instaladas em Manaus podem se creditar de IPI mesmo que produto adquirido tenha saído da ZFM com isenção ou alíquota reduzida. Esse crédito presumido torna produtos da ZFM mais competitivos que similares produzidos em outras regiões, compensando custos logísticos superiores.
Com reforma tributária extinguindo progressivamente IPI para maior parte dos produtos, esse mecanismo deixaria de funcionar. Para preservar diferencial competitivo, legislação criou equivalentes funcionais no novo sistema.
A partir de 2027, IPI terá alíquotas zeradas para maior parte dos produtos, mantendo-se apenas para itens que competem com produção da Zona Franca de Manaus. Durante todo período de transição até 2033, empresas manauaras manterão créditos de IPI. Essa manutenção temporária garante que não haja quebra abrupta de competitividade durante fase crítica de adaptação.
Para novo sistema de IBS e CBS, legislação concede créditos presumidos à indústria incentivada na ZFM. Esses créditos replicam no novo ambiente tributário vantagem competitiva que crédito presumido de IPI proporcionava no sistema antigo. Indústria incentivada na ZFM sujeita ao regime regular do IBS e CBS recebe crédito presumido de IBS de 7,5% sobre valor da operação com bens intermediários produzidos na ZFM e utilizados para incorporação na produção de bens finais.
Para CBS, há previsão de crédito presumido de 6% para produtos com IPI zerado a partir de 2027, com exceção de alguns setores. Nos demais casos, crédito será de 2%. Esses percentuais foram calibrados para manter aproximadamente mesma vantagem competitiva que sistema anterior proporcionava.
Além da indústria, empresas comerciais e prestadoras de serviços localizadas na ZFM beneficiam-se com alíquota zero de CBS nas operações internas, reduzindo custos e incentivando consumo local. Essa desoneração visa estimular mercado interno manauara e compensar isolamento geográfico da região.
Importações realizadas por indústria incentivada para utilização na Zona Franca de Manaus têm suspensa incidência de IBS e CBS. Essa suspensão permite que insumos importados não sejam onerados, mantendo competitividade de produtos finais exportados ou destinados ao mercado nacional.
Críticas ao tratamento da ZFM na reforma argumentam que manutenção de incentivos perpetua modelo de desenvolvimento questionável do ponto de vista ambiental e de eficiência econômica. Defensores contra-argumentam que desmantelar ZFM abruptamente causaria colapso econômico em Manaus, cidade de mais de 2 milhões de habitantes cuja economia depende fundamentalmente do polo industrial incentivado. Transição para modelo econômico alternativo exigiria décadas e investimentos maciços em infraestrutura e diversificação produtiva.
O caso do refino de petróleo ilustra tensões políticas em torno da ZFM. Historicamente, não havia restrições ao desenvolvimento do setor na área até promulgação da Lei 14.183/2021, que impôs limitações. A Lei Complementar 214/2025 incluiu refino de petróleo entre bens e serviços que podem usufruir do regime especial na ZFM, gerando controvérsia. Críticos alegam que inclusão da Refinaria da Amazônia no regime especial enseja distorção à concorrência e perda arrecadatória. Defensores argumentam que medida traz isonomia ao refino no Norte quanto ao restante do país.
Simples Nacional na reforma tributária
O Simples Nacional, regime especial de tributação criado para apoiar microempresas e empresas de pequeno porte, continuará existindo após reforma tributária mas passará por ajustes importantes para adequação à nova estrutura tributária. Aproximadamente 20 milhões de empresas brasileiras são optantes do Simples Nacional, representando mais de 90% do total de empresas formais do país.
A Lei Complementar 214/2025 mantém estrutura básica do Simples Nacional, com recolhimento unificado de tributos federais, estaduais e municipais através de Documento de Arrecadação do Simples Nacional. Porém, adaptações são necessárias porque ICMS e ISS, hoje incluídos no DAS, serão substituídos por IBS, e PIS/COFINS serão substituídos por CBS.
Optantes pelo Simples Nacional não poderão aproveitar créditos gerados pelo pagamento unificado previsto no Simples. Essa impossibilidade de creditamento já existe no sistema atual e se mantém. Porém, diferentemente do sistema atual onde adquirentes de bens e serviços de empresas do Simples enfrentam limitações no aproveitamento de créditos, a reforma estabelece que adquirentes poderão se creditar do IBS e CBS pagos pelo fornecedor optante do Simples.
Essa mudança é fundamental para competitividade do Simples Nacional. No sistema atual, grande empresa que compra insumos de fornecedor optante do Simples frequentemente não pode se creditar integralmente do ICMS ou PIS/COFINS embutidos no preço, criando desincentivo comercial para contratar fornecedores do Simples. Com reforma, esse desincentivo desaparece, pois comprador poderá se creditar normalmente desde que optante do Simples recolha em separado IBS e CBS.
Aqui surge inovação crucial: empresas optantes pelo Simples Nacional poderão optar por apurar e recolher IBS e CBS pelo regime regular desses tributos, fora do DAS, tornando-se aptas para apropriação e transferência integral do crédito tributário. Essa opção coloca optantes do Simples em pé de igualdade com empresas do regime regular no que se refere à geração de créditos para adquirentes.
A escolha entre permanecer integralmente no Simples ou segregar IBS e CBS para recolhimento em separado exigirá análise estratégica cuidadosa. Empresas do Simples que atuam predominantemente atendendo consumidor final terão pouco incentivo para sair do regime unificado, pois consumidores finais não se creditam. Porém, empresas que fornecem para outras empresas enfrentarão pressão de mercado para adotar recolhimento segregado, pois do contrário clientes empresariais terão dificuldade ou impossibilidade de recuperar créditos.
A legislação inclui ainda proteção contra uso indevido do Simples Nacional. Em relação àqueles que são impedidos de ingressar no Simples, texto inclui expressão “de fato ou de direito” para abranger casos de pessoas usadas como laranjas, dando nome para constar como titular ou sócio da empresa a fim de contar com imposto simplificado e reduzido, quando real proprietário está vinculado a empresa maior.
Além do impedimento atual para empresas que sejam filial ou representação de empresa sediada no exterior, reforma impede que empresa do Simples Nacional tenha filial, sucursal, agência ou representação no exterior. Essa vedação busca evitar que empresas utilizem Simples como plataforma de operações internacionais complexas incompatíveis com espírito do regime.
Para Microempreendedor Individual, Conselho Gestor do Simples Nacional definirá quais atividades serão autorizadas a optar pelo MEI, visando evitar fragilização de relações de trabalho. Preocupação é que profissionais que deveriam ser contratados como empregados sejam forçados a tornarem-se MEIs para reduzir custos trabalhistas do contratante, gerando pejotização em massa.
Reduções de alíquotas em 30%, 60% e 100%
A Lei Complementar 214/2025 estabelece escala de reduções de alíquotas que formam os regimes diferenciados propriamente ditos. Essas reduções aplicam-se uniformemente ao IBS e à CBS, mantendo isonomia entre tributo federal e estadual/municipal.
Redução de 100% (alíquota zero)
Cesta básica nacional de alimentos tem alíquota zerada. O Anexo I da Lei Complementar lista produtos destinados à alimentação humana que compõem essa cesta: arroz, feijão, leite, manteiga, margarina, óleos de soja, milho e canola, farinha de mandioca e de trigo, açúcar, massas alimentícias, pão comum, carnes bovinas, suínas, de aves e pescados, queijo, ovos, café, sal e alguns outros itens básicos.
Essa isenção é complementar ao cashback tributário. Enquanto cashback devolve parcela de tributos pagos por famílias de baixa renda, isenção da cesta básica reduz preço de produtos essenciais para todos os consumidores, ricos ou pobres. Debate sobre eficiência redistributiva dessa combinação é acalorado, mas prevaleceu entendimento político de que isenção total sobre alimentos básicos é necessária para viabilização social da reforma.
Serviços de educação de ensino infantil, fundamental, médio e superior, assim como serviços de educação profissional e tecnológica, serão isentos. Essa isenção busca incentivar oferta privada de educação e evitar encarecimento de mensalidades escolares.
Serviços de saúde, incluindo atividades de apoio diagnóstico e terapêutico, dispositivos médicos, medicamentos e produtos de higiene pessoal constantes de lista específica também terão alíquota zero. Aqui há debate sobre amplitude da lista, pois nem todos medicamentos serão isentos, apenas aqueles considerados essenciais.
Redução de 70%
Aluguéis de imóveis residenciais terão redução de 70% da alíquota. Essa redução significativa reconhece que habitação é necessidade básica e que oneração pesada sobre aluguéis impactaria negativamente mercado imobiliário residencial.
Redução de 60%
Ampla gama de produtos e serviços conta com redução de 60%, incluindo polpa de frutas, sucos naturais, produtos de higiene pessoal não incluídos na alíquota zero, dispositivos médicos e de acessibilidade para pessoas com deficiência, medicamentos não incluídos na lista de alíquota zero, serviços de saúde não incluídos na alíquota zero, serviços de profissionais liberais regulamentados, transporte coletivo de passageiros, produções artísticas, culturais, de eventos e jornalísticas, bens e serviços relacionados a segurança e soberania nacional, insumos agropecuários e aquícolas, produções nacionais artísticas e culturais.
Essa categoria intermediária busca equilíbrio entre desoneração completa e tributação plena, reconhecendo essencialidade ou relevância estratégica sem isentar totalmente.
Redução de 30%
Serviços prestados por profissionais de áreas intelectuais, científicas, literárias ou artísticas regulamentados por conselhos profissionais terão redução de 30%. Advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, contadores e outros profissionais regulamentados beneficiam-se dessa redução, amenizando impacto da reforma sobre serviços profissionais especializados.
Regimes específicos para setores estratégicos
Combustíveis e lubrificantes
Combustíveis contarão com regime monofásico, onde tributo incide uma única vez ao longo da cadeia produtiva, usando alíquotas uniformes em todo território nacional. Essas alíquotas poderão ser específicas por unidade de medida (litro ou metro cúbico) e diferenciadas por produto.
Esse regime monofásico simplifica arrecadação e fiscalização, concentrando recolhimento em refinarias e importadores. Distribuidores e postos de combustível não recolhem IBS e CBS, mas também não podem se creditar de tributos pagos na aquisição, pois já foram quitados definitivamente na etapa anterior.
Biocombustíveis terão tratamento favorecido, com alíquotas menores que combustíveis fósseis, incentivando transição energética. Porém, crédito não poderá ser aproveitado por comprador se produto for destinado à distribuição, comercialização ou revenda, mantendo lógica monofásica.
Serviços financeiros
Setor financeiro receberá regime específico com alíquotas e bases de cálculo que manterão, de modo geral, por cinco anos, carga tributária dos tributos extintos. Essa manutenção temporária visa evitar choques abruptos em setor sistematicamente importante.
Operações de crédito, câmbio, seguro, resseguro, consórcio, arrendamento mercantil, securitização, previdência privada, capitalização, arranjos de pagamento e operações com títulos e valores mobiliários terão base de cálculo calculada com base em spread, margem ou resultado, não sobre valor total da operação.
Essa base de cálculo diferenciada reconhece que em operação financeira, valor total movimentado não representa valor agregado nem capacidade contributiva. Banco que empresta R$ 100.000 e recebe de volta R$ 110.000 não agregou R$ 110.000 de valor, mas apenas R$ 10.000 de juros. Tributar valor total da operação geraria oneração desproporcional.
FGTS poderá contar com alíquotas e base de cálculo diferenciadas em relação aos demais tipos de empréstimos, devido a caráter de financiamento habitacional e função social. Outros fundos garantidores ou executores de políticas públicas também poderão contar com tratamento especial.
Tarifas e comissões bancárias não terão regime específico, sendo tributadas como qualquer outro serviço. Essa exclusão gerou críticas de setor bancário mas foi mantida para evitar proteção excessiva.
Planos de assistência à saúde
Planos de saúde contarão com regime específico com alterações de alíquotas, mudanças em regras de creditamento e na base de cálculo. Possibilidade de cálculo com base na receita ou faturamento em alíquota uniforme simplifica apuração para operadoras.
Setor de saúde suplementar tem particularidades operacionais que tornam aplicação de regime regular complexa. Há extensa cadeia de intermediação entre operadora, prestadores de serviço médico-hospitalares e beneficiários, com dificuldades de identificação precisa de valor agregado em cada etapa. Regime específico busca endereçar essas complexidades.
Cooperativas
Sociedades cooperativas terão regime específico para assegurar sua competitividade. Legislação definirá hipóteses em que IBS não incidirá nas operações realizadas entre cooperativa e cooperados e entre cooperativas, bem como quando créditos serão transferidos entre eles.
Esse regime optativo reconhece natureza distinta das cooperativas, onde associados são simultaneamente donos e usuários. Tributar operações internas da cooperativa equivaleria a tributar organização interna de empresa convencional, gerando oneração incompatível com estrutura cooperativista.
Cooperativas agropecuárias, de crédito, de saúde e de transporte são segmentos especialmente dependentes desse tratamento diferenciado para manutenção de competitividade frente a estruturas empresariais tradicionais.
Bares e restaurantes
Setor de alimentação fora do lar terá regime específico reconhecendo particularidades de suas operações. Discussão envolveu amplitude do regime: inclui apenas bares e restaurantes tradicionais ou também fast food, lanchonetes, food trucks e serviços de buffet?
Legislação final ampliou escopo para incluir hotelaria, parques de diversão e parques temáticos, aviação regional e agências de viagens e turismo, criando regime integrado para setor de turismo e hospitalidade.
Esse tratamento diferenciado visa preservar competitividade de setores intensivos em mão de obra e com margens operacionais apertadas, que sofreriam impacto desproporcional com alíquota padrão elevada.
Transporte coletivo de passageiros
Serviços de transporte público coletivo rodoviário e metroviário de caráter urbano, semiurbano e metropolitano não sofrerão incidência de IBS e CBS. Essa isenção total reconhece função social essencial do transporte público e necessidade de manter tarifas acessíveis para população de baixa renda.
Transporte intermunicipal e interestadual de passageiros terá alíquota reduzida mas não isenção total, diferenciando-se de transporte urbano pela menor essencialidade relativa.
Operações com bens imóveis
Setor imobiliário contará com regime específico considerando particularidades de operações de compra, venda, locação e incorporação imobiliária. Discussão envolve base de cálculo: incide sobre valor total da operação ou apenas sobre comissões e margem de incorporadores?
Legislação prevê possibilidade de alíquotas reduzidas em até 40% para operações com bens imóveis, reconhecendo relevância social da habitação e impacto significativo que tributação pesada teria sobre mercado imobiliário.
Tratados e convenções internacionais
Operações alcançadas por tratado ou convenção internacional, inclusive referentes a missões diplomáticas, repartições consulares, representações de organismos internacionais e respectivos funcionários acreditados, contarão com regime específico preservando imunidades e privilégios estabelecidos pelo Direito Internacional.
Essa previsão garante que Brasil continue cumprindo obrigações internacionais de não tributar atividades diplomáticas e de organizações internacionais sediadas no país.
Impacto fiscal das exceções e reequilíbrio de alíquotas
Cada tratamento diferenciado ou específico concedido reduz base tributável sobre a qual incidem IBS e CBS, exigindo elevação das alíquotas padrão para manter neutralidade arrecadatória. A Emenda Constitucional 132/2023 estabelece que qualquer mudança para menos nessas alíquotas deverá provocar aumento da carga em setores não contemplados de forma a reequilibrar arrecadação dos entes federativos.
Estimativas iniciais apontavam para alíquota padrão em torno de 25% caso não houvesse exceções. Com proliferação de tratamentos diferenciados aprovados durante tramitação legislativa, alíquota padrão necessária elevou-se para aproximadamente 28%, possivelmente tornando Brasil país com maior alíquota de IVA do mundo.
Essa elevação gera preocupação sobre competitividade internacional e impacto sobre setores que não receberam tratamento diferenciado. Serviços profissionais, tecnologia, manufatura de produtos não essenciais e comércio varejista de bens não básicos enfrentarão carga tributária substancialmente maior que atual.
O mecanismo de ajuste de alíquotas ocorrerá através de revisões periódicas. A cada cinco anos, governo deverá apresentar ao Congresso avaliação de impacto fiscal de tratamentos diferenciados, podendo propor ajustes para manter sustentabilidade arrecadatória. Essa revisão quinquenal é salvaguarda contra erosão progressiva da base tributável através de concessões incrementais de benefícios setoriais.
Desafios de implementação e fiscalização
A multiplicidade de regimes diferenciados e específicos cria complexidade operacional significativa contrariando objetivo original de simplicidade. Empresas precisarão classificar corretamente cada operação em categoria apropriada para aplicar tratamento tributário correto. Erros de classificação gerarão autuações e disputas.
Sistemas de gestão empresarial (ERPs) e softwares fiscais precisarão ser atualizados para contemplar todas as variações de tratamento tributário. Desenvolvedores de software enfrentam desafio de traduzir legislação complexa em regras de negócio automatizadas que funcionem corretamente em contextos diversos.
Fiscalização tributária precisará desenvolver capacitação especializada para auditar adequadamente cada regime específico. Auditores acostumados a fiscalizar ICMS sobre circulação de mercadorias precisarão dominar peculiaridades de tributação de serviços financeiros, operações imobiliárias, cooperativas e dezenas de outras situações especiais.
Contencioso tributário sobre enquadramento em regimes diferenciados será volumoso. Empresas buscarão interpretar abrangência de benefícios da forma mais ampla possível. Fisco tenderá a interpretações restritivas. Tribunais precisarão arbitrar milhares de disputas sobre aplicabilidade de cada exceção.
Pressões políticas por ampliação de benefícios
Durante tramitação legislativa, dezenas de setores mobilizaram-se para obter tratamento diferenciado. Setor de eventos culturais, produtores rurais, indústria química, setor automotivo, construção civil, tecnologia, educação, saúde e virtualmente todos os demais segmentos organizados apresentaram pleitos fundamentados em argumentos de essencialidade, geração de empregos, desenvolvimento regional ou competitividade internacional.
Parlamentares, especialmente aqueles representando regiões ou setores específicos, pressionaram por inclusões. Cada concessão setorial representa votos políticos conquistados, mas também complexidade adicional e alíquota padrão mais elevada para demais setores.
Esse processo de barganha política é inerente a democracias, mas gera risco de captura regulatória onde setores organizados conseguem benefícios desproporcionais à custa de setores desorganizados ou de consumidores finais difusos. O resultado final representa equilíbrio instável entre forças políticas em determinado momento histórico, sujeito a renegociação constante.
A revisão quinquenal prevista na legislação será palco de intensas disputas. Setores contemplados resistirão ferozmente a quaisquer tentativas de redução ou eliminação de benefícios. Setores excluídos buscarão inclusão. Governo terá difícil tarefa de arbitrar essas disputas sob pressão de manter arrecadação e controlar alíquota padrão.
Comparação internacional e lições aprendidas
Experiência internacional com regimes especiais em IVAs oferece lições importantes. Países que mantiveram multiplicidade de alíquotas e exceções, como México e Índia, sofreram com complexidade, litígios e alíquotas elevadas. Países que resistiram a proliferação de exceções, como Nova Zelândia, conseguiram manter alíquotas mais baixas e sistemas mais simples.
Brasil optou claramente por modelo de múltiplas exceções, refletindo complexidade de sua realidade federativa, desigualdades regionais profundas e força de setores organizados. Essa escolha terá consequências de longo prazo para funcionamento do sistema tributário.
A efetividade de regimes diferenciados em atingir objetivos declarados de desenvolvimento regional, proteção de setores essenciais ou promoção de equidade é empiricamente questionável. Estudos internacionais demonstram que benefícios fiscais frequentemente são capturados por agentes econômicos já estabelecidos ao invés de gerar desenvolvimento genuíno.
No caso específico da Zona Franca de Manaus, décadas de incentivos não resultaram em diversificação econômica sustentável da região. Economia manauara permanece dependente de incentivos fiscais, criando ciclo vicioso onde retirada de benefícios causaria colapso mas manutenção perpetua dependência.
Perspectivas para evolução dos regimes diferenciados
A configuração atual de regimes diferenciados não é definitiva. Pressões políticas, choques econômicos, mudanças tecnológicas e aprendizado com implementação resultarão em ajustes ao longo do tempo.
Setores atualmente não contemplados intensificarão esforços para obtenção de tratamentos especiais. Agricultura orgânica, economia criativa, startups tecnológicas, energias renováveis e dezenas de outros segmentos já articulam argumentos para inclusão em regimes favorecidos.
Governo enfrentará dilema fiscal. Expandir benefícios reduz arrecadação ou eleva alíquota padrão, ambas consequências indesejáveis. Resistir a pressões gera custo político e potencial judicialização se argumentos de isonomia e razoabilidade forem convincentes.
A tentação de utilizar regimes diferenciados como instrumento de política industrial será constante. Governos podem ser tentados a conceder benefícios temporários para estimular setores considerados estratégicos, mas experiência demonstra que benefícios temporários frequentemente tornam-se permanentes devido a captura política.
A trajetória mais provável é de proliferação gradual de exceções ao longo das décadas, elevando progressivamente alíquota padrão e complexificando sistema. Apenas crises fiscais severas ou reformas políticas profundas conseguiriam reverter essa tendência.
O sucesso da reforma tributária em simplificar sistema será medido não apenas por desenho legislativo inicial, mas por capacidade de resistir a pressões por excepcionalização crescente ao longo do tempo. Se Brasil conseguirá exercer essa disciplina fiscal e política, apenas décadas futuras revelarão.
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